Sonhos: do sentido à interpretação

Postado em 3 de maio de 2018

sentido à interpretação

Desde as civilizações mais antigas, encontram-se relatos sobre o inquietante enigma dos sonhos. Isso se deveu à crença de que eles abrigavam uma mensagem benévola ou hostil, que poderia vir de deuses e demônios. Todos conhecem a história bíblica de José e o sonho do faraó das sete vacas gordas sucedidas por outras sete vacas magras que devoravam as primeiras, que é interpretado por José como sete anos de fome que haveria de consumir a abundância produzida no Egito pelos outros sete anos de prósperas colheitas.
Antes disso, os gregos já consideravam o sonho como mensagem divina. Aristóteles foi o primeiro a afirmar que ele era um produto psicológico. No início do século XIX, Hegel rejeita o sonho por considerá-lo irracional, mas seus colegas contemporâneos, desde poetas a filósofos do romantismo alemão, de Schelling a Nietzsche passando por Schopenhauer, escreveram, refletiram e debateram sobre ele, ou seja, o sonho sempre foi um enigma de grande interesse social.
Somente em 1.900 que um tratado realmente consistente chega ao conhecimento do grande público. Freud escreve sua grande obra A Intepretação dos Sonhos, que no início vendeu poucos exemplares, mas logo passou a ser conhecida mundialmente. Nela, Freud demonstra algo totalmente novo sobre os sonhos, que estes seriam a realização de um desejo reprimido, infantil e inconsciente. Essa interpretação freudiana inspirou os surrealistas do século XX que conviveram intensamente com Jacques Lacan e que apresentou-lhes o sonho como sendo uma das formações do inconsciente.
Depois de Freud, os sonhos passam a ser interpretados pela associação livre, técnica psicanalítica que traz para a superfície uma inteligência inconsciente e mostra que, para chegar a ela, não é necessário mergulhar profundamente e, portanto, não há mais a necessidade de hipnose. Aliás, Freud já havia abandonado esse método antes de 1900 por achá-lo ineficaz e que poderia induzir ao erro, agora ele afirma que para decifrar o inconsciente e os sonhos é preciso apenas saber escutar as mensagens metafóricas do sonho.
O guardião do repouso, o sonho também é para Freud aquilo que possibilita dormir. É comum na clínica pacientes em grande estado de angústia que relatam não conseguirem dormir, ou seja, não podem descansar porque podem sonhar e a angústia impede que eles recorram às ficções oníricas. Mesmo quando conseguem dormir, os sonhos de angústia provocam o despertar.
A grande descoberta de Freud são os processos inconscientes de deslocamento e condensação presentes no sonho. Ao serem decifrados, os sonhos perdem seu poder imagético e passam a ser uma organização de pensamentos e ideias que apontam para o desejo. Sonhos são pensamentos, ideias recalcadas que retornam em forma de metáforas. Jacques Lacan vai se aprofundar mais nesse estudo e observa o caráter de charada do sonho.
Poderíamos resumir que Lacan vai pontuar que, aquilo que foi reprimido pelo superego na tentativa de deixar o inconsciente mudo, fracassa e retorna na forma de sonho. Não apenas no sonho, o retorno do recalcado se dá através, dos sonhos, atos falhos, lapsos de linguagem, chistes e sintomas.
Mais uma vez, chegamos a um ponto crucial para a psicanálise. Embora o sonho tenha um sentido que é interpretável, há um limite para a interpretação, pois o inconsciente é uma trama de elementos articulados. O sonho joga luz sobre esses elementos, desvendando o patológico, aquilo que falha, que tropeça e é revelado através do trabalho do sonho isolando as forças que operam nele, exibindo uma inteligência inconsciente.
Há uma tentação constante daquele que se analisa em querer saber o que o sonho está querendo dizer. Em vez de deixar-se associar livremente elemento por elemento do sonho, ele quer uma resposta imediata: o que esse sonho quer dizer? Serão sete anos de vacas magras?
Isso acontece porque existe no sujeito uma paixão pelo sentido – paixão maior do que o desejo de saber sobre os seus desejos, uma fantasia de que o outro sabe sobre mim, vai me dizer como eu sou e o que devo fazer para evitar os sete anos de vacas magras. José pôde fazer isso, os psicanalistas convocam o sonhador a decifrar seu próprio sonho: quem sabe é você! O que esse sonho fez você pensar? O que ele trouxe à tona? A partir daí, o analisando descobre a inutilidade do sentido do sonho e passa a se interessar pelas associações que esse sonho produz, que o leva a lembrar de aspectos recalcados, mas que ainda fazem efeitos: medos, inseguranças, demanda de amor, procura inútil pela essência, que o impedem de se apropriar do simbólico e construir sua existência de maneira singular e estruturada.

Maria Odete G. Galvão
Historiadora, psicóloga e psicanalista, Mestre em semiótica psicanalítica pela PUC/SP, e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Cultura de Arujá
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