O inconsciente fala e o corpo sofre

Postado em 27 de agosto de 2018

Diferente do que muitos pensam, a psicanálise não se baseia na ideia de que o corpo fala. As pesquisas e a clínica psicanalítica demonstraram que é o inconsciente que coloca esse corpo para falar através de metáforas, ou melhor dizendo, sintomas. Mas do que se trata então o sintoma para a psicanálise? Do que trata esse dispositivo que põe o corpo para falar? O que está por trás da fala daquele que sofre?
Quando vamos ao médico não dizemos a ele: “estou com medo de não ser amada”, ou “não consigo falar em público”, ou “não sei como agradar meu marido” etc. Estas são claramente queixas dirigidas a um psicanalista que é colocado na posição de saber, e é justo o que vai permitir que a queixa inicial transforme-se em um sintoma analítico.
Diferentemente da medicina, na psicanálise o corpo é definido pela sua organização libidinal. Em psicanálise, portanto, é do corpo erógeno e não do biológico do qual se trata, isso que faz ainda hoje os sintomas causarem perplexidade e desafiarem o saber médico. É comum depois de uma entrevista aos meios de comunicação, com médicos descrevendo sintomas de novas patologias, analisantes relatarem nas sessões que tiveram os mesmos sintomas descritos nessa entrevista.
E o que dizer desses sintomas e dessa dificuldade em lidar com a assunção corporal? O que dizer de mulheres que se submetem a procedimentos estéticos que as conduzem ao pior?
Para a psicanálise os corpos não existem fora da linguagem, já que as práticas da linguagem possuem valor determinante na aparência, expressividade e inclusive na saúde dos corpos. Os corpos mantêm com a rede discursiva na qual estão inseridos uma materialidade que permite ser um, mas que também aprisiona, confunde, demanda preenchimento e dedicação.
As pessoas creem que os seus corpos as pertencem, independente do outro, mas sua constituição, como analisa Lacan no seu texto sobre o Estádio do Espelho, está imbricada com a relação com o outro (seu semelhante) e com o Outro (abstração da Cultura), em uma trama que envolve sua organicidade pelas imagens e fantasias, e que a todo instante pode escapar.
Vemos constantemente na clínica que o lugar que o corpo ocupa atualmente é uma das consequências do enfraquecimento dos laços e projetos sociais e do incentivo à cultura do narcisismo. O século XXI trouxe o excesso, excesso de globalização, da migração e da deslocalização dos poderes, trouxe também um excesso de atenção ao corpo que o tornou objeto de investimento privilegiado, tornando-o um corpo território, viril, do excesso e da beleza.
O professor e psicanalista Joel Birman em suas pesquisas vêm apontando para essa problemática atual: o mundo contemporâneo é conturbado e os instrumentos interpretativos do ser humano ficam aquém da rapidez dos acontecimentos. O sujeito não consegue atender às demandas do mundo globalizado e vê-se lançado no desamparo. Nesse cenário, um novo social emerge, onde a fragmentação da subjetividade marca novas formas de subjetivação que se desdobram continuamente, onde o eu é privilegiado.
Ou seja, a subjetividade na cultura do narcisismo é caracterizada pela incapacidade do sujeito de admirar o outro em sua diferença, pois está excessivamente preso em si mesmo, vivendo em seu registro especular, e o que interessa é o engrandecimento grotesco de sua própria imagem. Dessa forma, não se produzem singularidades, caracterizando individualidades marcadas pela pobreza erótica e pela mediocridade simbólica, recusando-se o desamparo.
Para a psicanálise não interessa a mobilização sobre o certo e o errado ou a interpretação das causas, e sim apontar para as consequências das escolhas, respeitando os sujeitos em sua singularidade, ao mesmo tempo reconhecendo os limites e aceitando a incompletude do saber sobre si, para que cada um se responsabilize pelos seus casos e acasos.

Maria Odete G. Galvão
Historiadora, psicóloga e psicanalista, Mestre em semiótica psicanalítica pela PUC/SP, e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Cultura de Arujá
Fone: 4653-6691 / 97100-5253
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