O divã: O que só se vê olhando para outro lugar
Postado em 10 de dezembro de 2024
O divã, símbolo emblemático do processo analítico, é mais do que uma ferramenta prática na clínica psicanalítica. Ele é, em si, um dispositivo que propicia a exploração do inconsciente de maneira oblíqua, permitindo ao sujeito escapar do olhar direto do analista e, paradoxalmente, ver aquilo que está fora do campo de visão consciente. No seminário “As Formações do Inconsciente”, Lacan nos lembra de que, para compreender o inconsciente, é necessário olhar “para outro lugar”. Esse deslocamento do olhar para além do óbvio nos revela o que, de outra forma, permaneceria oculto.
Quando uma pessoa que procura um analista é convidada a deitar-se no divã, ela se afasta do contato visual com o analista, o que gera uma liberdade específica para o surgimento do discurso inconsciente. Esse afastamento do olhar direto permite que a fala do sujeito se desdobre em direção aos lugares menos vigiados pela consciência. Lacan sugere que o inconsciente não se manifesta de maneira direta; ele se revela por meio de lapsos, atos falhos, sintomas e sonhos, todos sinais que escapam à percepção imediata. Esses fenômenos só se tornam perceptíveis quando desviamos o olhar do que parece óbvio, permitindo que as “bordas” do discurso se manifestem e expressem o que o sujeito não consegue, ou não quer, articular de forma consciente.
No espaço do divã, esse “olhar para outro lugar” se torna uma prática constante. Ali, o sujeito é convidado a falar livremente. Essas manifestações são oblíquas: em vez de emergirem de forma direta, insinuam-se através de associações e deslizes que ocorrem fora do campo da intenção consciente do sujeito. O divã, assim, permite que aquilo que estava recalcado, contido nas margens do discurso, encontre um espaço para vir à tona.
Essa abordagem oblíqua do inconsciente revela que, muitas vezes, é preciso dar voz aos detalhes periféricos, aos fragmentos aparentemente desconexos, aos intervalos entre as palavras, para captar o essencial. Lacan nos convida a entender que o desejo inconsciente raramente se apresenta de forma frontal; ele se insinua, fragmenta-se e surge nas entrelinhas. E é nesse jogo entre o visível e o oculto, o dito e o não-dito, que o analista tenta alcançar uma compreensão mais profunda do sujeito.
Assim, o divã torna-se um espaço de liberdade e desvio, onde o sujeito pode “olhar para outro lugar” — afastando-se das censuras e vigilâncias do próprio eu — e, nesse movimento, aproximar-se de sua verdade inconsciente. É através desse movimento sutil, que foge do foco direto e da linearidade do discurso consciente, que o divã revela o que só pode ser visto quando, paradoxalmente, não se olha diretamente para ele.